por Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente
Foi um ano extremamente intenso para as discussões sobre a Internet no Brasil. Em abril foi aprovado pelo Congresso o Marco Civil da Internet (a “constituição da Internet brasileira”), lei que estabelece os direitos dos usuários, as regras para atuação das empresas do setor e as diretrizes para atuação do Estado. A sua tramitação, que se arrastava pelos anos, foi impulsionada pelo efeito das denúncias do ex funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos EUA, Edward Snowden. A lei tem sido entendida como pioneira, tanto por ter sido fruto de um longo processo de consulta pública e participação, quanto por tratar de questões complexas através de um prisma favorável à liberdade de expressão e à proteção da privacidade na rede.
Após aprovado o Marco Civil, o Judiciário, responsável por aplicá-lo, atraiu muitos olhares. Mais do que nunca, as questões que podem mudar nossa experiência na rede passaram pelos tribunais. Muitas delas sequer abarcadas pelo Marco Civil ou por qualquer outra regulamentação.
Como retrospectiva, pinçamos 5 decisões judiciais que retratam as tendências e assuntos mais comentados do ano de 2014 sobre regulação da Internet no Brasil.
1. Xuxa e o esquecimento
O ano não foi fácil para a rainha dos baixinhos, dispensada da sua emissora em dezembro. Xuxa perdeu em última instância processo que movia contra o buscador Google com o objetivo de inviabilizar pesquisas na Internet que ligassem seu nome a termos como “pedófila”. A apresentadora visava desvincular seu nome do filme “Amor Estranho Amor”, no qual, em sua juventude, contracenava eroticamente com um menino.
Em termos simples, Xuxa buscava o reconhecimento do direito de ter esquecida esta parte de sua trajetória artística – ou melhor, o direito de desindexá-la dos resultados do Google. Sua demanda está sincronizada com relevantes decisões internacionais sobre este conceito chamado “direito ao esquecimento”. No início do ano, a Corte Europeia de Justiça reconheceu a existência deste “direito”, mas não em casos nos quais os fatos em questão tem algum interesse público.
2. O ano da raposa, estrelando: Secret
Todos os (últimos) anos, alguns aplicativos fazem a cabeça dos usuários de Internet. 2014 foi o ano do Secret, uma plataforma de postagem de comentários e imagens que esconde a identidade do autor. O Secret passou a ser utilizado para todo tipo de conteúdos, desde fofocas até pedidos de conselhos e ajuda.
Entendendo que o app trazia uma situação de postagem anônima que violaria a Constituição Federal (artigo 5º, inciso IV), o Ministério Público Estadual do Espírito Santo pediu que as lojas de aplicativos removessem o Secret, para cessar o que chamaram de “bullying virtual”. O juiz do caso concordou com o pedido e determinou a remoção, ainda que haja possibilidade de identificação judicial dos usuários. A decisão dividiu especialistas.
A polêmica trouxe uma discussão difícil, mas importante, sobre os contornos da proibição ao anonimato. O anonimato do disque-denúncia ou o uso de pseudônimos entram na regra? E na Internet, em que casos a ocultação da identidade é permitida ou desejável? A possibilidade de identificação do usuário do Secret não excluiria o aparente anonimato?
3. Corpos espalhados: revenge porn e o Whatsapp
2014 também foi o ano do Whatsapp. O aplicativo foi comprado pelo gigante Facebook e consolidou-se como o grande provedor de serviço de messaging no país. Com uma enorme base de usuários e via fácil para a viralização de mídias de todos os tipos, o Whats foi jogado no banco dos réus antes mesmo de abrir uma representação no Brasil.
O ambiente híbrido entre público e privado dos grupos do app foi espaço propício para a disseminação de imagens íntimas não autorizadas, muitas vezes postadas inicialmente por ex-parceiros. Desde o final de 2013, o chamado revenge porn obteve enorme destaque na imprensa, especialmente após o suicídio de duas vítimas no intervalo de dez dias. O tema inclusive foi objeto de tratamento especial no Marco Civil.
Em setembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o Facebook fornecesse dados de usuários e grupos do Whatsapp para identificar os responsáveis pela disseminação de imagens íntimas de uma estudante. A decisão foi publicada ainda antes da compra do app ter sido concretizada.
4. 2014: as eleições da Internet
Nesse ano, as eleições presidenciais abriram espaço para o pequeno cientista político de dentro de todos nós. Muitos perderam colegas de trabalho, amigos e parentes. Alguns laços foram reatados, outros rompidos mais violentamente. Um exemplo é a equipe do Porta dos Fundos e o Anthony Garotinho, que certamente vão mudar de calçada quando se encontrarem na rua ainda por algum tempo.
O Porta dos Fundos produziu dois vídeos de humor que ligavam Anthony Garotinho a criminosos e ao próprio demônio. Garotinho não gostou, e conseguiu, na Justiça Eleitoral, a remoção dos vídeos. Os esquetes só voltaram ao ar com a derrota do candidato (veja aqui e aqui). A justificativa para a retirada dos vídeos era que o conteúdo poderia “trazer consequências danosas ao candidato, maculando sua imagem junto à população, de cuja manifestação no pleito eleitoral depende sua candidatura”.
O caso mobilizou muita gente – e não foi só pela audiência do Porta dos Fundos, que fez algum barulho com a história. A decisão repercutiu na importante discussão sobre liberdade de expressão da população no período eleitoral. Segundo o Judiciário, o vídeo macula a imagem do candidato junto à população, de quem ele depende para ser votado. A partir dessa argumentação, a população não pode então se manifestar para que ele não seja votado, ou mesmo ter acesso a opiniões que não sejam material de campanha? Melhor então “desligar a Internet” durante as eleições?
5. Como você ouviu música? O streaming chegou chegando.
2014 foi o ano que o Spotify e o Google Play Music entraram no Brasil, fazendo barulho e prometendo mudar a forma como o brasileiro escuta música pela Internet – seguindo o Deezer, em 2013, e o Rdio, em 2011. Ainda no fim de 2013, entrou em vigor a Lei n. 12.853/12, que reforma a gestão coletiva por execução pública musical no Brasil (atribuição do ECAD), mas não tem regras específicas para o ambiente digital. Com poucas definições legais sobre o papel dos atores tradicionais de cobrança de direito autoral neste novo contexto, o mercado vai se acomodando, e os juízes dando pistas sobre como serão entendidos os novos serviços, do ponto de vista da remuneração dos autores e artistas.
Uma decisão de abril de 2014, do TJ-SP, determinou que o ECAD não tem prerrogativa de cobrar das rádios pelo serviço de simulcasting, que não é nada além da transmissão simultânea e idêntica da programação transmitida por ondas de rádio, e já que a radiodifusora já paga por essa transmissão. A decisão vai além: esse tipo de atividade na Internet é radiodifusão. E o ECAD não pode cobrar duas vezes pela mesma transmissão, ainda que em veículos diferentes.
Com isso, delineia-se uma cisão entre esses serviços e aqueles de streaming interativo, como é o caso do Spotify e dos seus concorrentes. Já esses últimos foram alvo de polêmicas internacionais (como a Taylor Swift tirando suas músicas do Spotify, reclamando do valor da retribuição), mas nada significativo ainda no Brasil. Cenas dos próximos capítulos.
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Nota: Com este post, fechamos o ano e entramos em férias. Voltamos na segunda semana de 2015.